3 de janeiro de 2016

O mesmo e o frágil da poesia de Brasília em 2015

Quanto abordei minimamente a movimentação da poesia em 2015, disse que em Brasília a poesia “orbitou no mesmo e no frágil”. Alguns poderão estar se indagando se a expressão não mereceria desdobramento para uma maior claridade sobre este “mesmo” e este “frágil”.  Afinal estou no processo de construção da poesia de Brasília desde os anos 1970 e não preciso temer expressar uma abordagem crítica ao que ocorre ano a ano na produção literária da cidade.
                Há que reconhecer que alguns movimentos não foram enriquecedores para os poetas autóctones. Quando o poeta vai para a rua em movimentos como o Coletivo de Poetas e Mostra Itinerante Poesia Falada a cidade ganha, mas os poetas perdem. Os locais de leitura exigem poemas de expressividade nua e crua, enquanto a poesia exige processos internos, nos tempos atuais, que não servem para serem levados para ambientes enfumaçados e descompromissados como cafés e casas noturnas. Quando contatamos os livros dos autores que integram esses movimentos, deparamos com uma poesia excessivamente oral, debochada, com perda de construção interna, desenvolvimento linguístico e atemporalidade.  
                Uma poesia que está perdendo muito com este movimento é a de Carla Andrade. No pequeno livrete que ela publicou em 2015, Voltagem ˗ pequeno, que chega a ser insuficiente para se ter noção exata de sua poesia ˗, ela tem a obrigação de se debruçar excessivamente sobre o corpo. E essa temática já está por demais explorada. Tomemos o poema "Hecatombe de emoções". Alguns versos são cativantes: E as palavras ficam um pouco rebentas/querendo sair do ovo dos ponteiros.  Isso do “ovo dos ponteiros” é sensacional.  E ela desdobra outras imagens geniais: “esterco de cada um”, “enxurrada de flores amarelas”.  Depois descamba para o amontoado inútil de adjetivos: olhos convergentes/irrevogáveis…  Mas a poesia dela não precisa de poema como “Função do riso”, que não tem novidade alguma, a não ser despertar alguma hilaridade durante a leitura em um café (Nunca mais/falo eu te amo. /Esqueça!) E o segundo terceto merece menos sorte ainda. E a Carla Andrade tem um potencial inimaginável e nele aposto fundo.
               O livro da Noélia Ribeiro, Escalafobética, sofre ainda mais com esta experiência de rua e dos ecos remanescentes da poesia marginal. Perde totalmente para o superficial. Cheio de lugares comuns, adolescente. (morro de medo da paixão) Perto de ti/Arrepio nas costas/Tremores nas pernas. Estás aqui a me abraçar. Não precisei nem pular páginas para descolar estes versos. Prova de que a tradição da poesia de Brasília tem sacrificado muitos dos seus ícones, pois não contribui para que eles evoluam.
              Tivemos novos lançamentos de Nicolas Behr. No último nem pude comparecer. É chover no molhado falar do seu processo criativo, que já é íntimo de todos. Uma obrigatoriedade de registro da cidade, sem se abrir às suas contradições.
                Tivemos ainda Sem passagem para Barcelona, de Alberto Bresciani, pela editora José Olympio. Talvez o livro mais bem editado, de autor de Brasília, pois saiu por uma editora de fora. Agrada-me a exatidão, a limpeza da poesia de Bresciani ˗ o que não é suficiente para que ela se apresente resistente. O autor está precisando desdobrar mais as imagens, atrever-se mais, segurar mais o fôlego para que a temática e as imagens se distendam numa combustão de maior expressão metafísica. Acho que ele está sofrendo desse medo do poeta atual: controle da compreensão interior. O poeta atual sabe mais do que deixa a poesia se expressar.
                Ainda tem os livros de Francisco K e de Angélica Torres Lima, que foram lançados no estertor de 2015. Error, de Francisco K, não se contamina com os movimentos poéticos de rua, mas não se descola de um minimalismo mallarmaico. Pelo menos ele se mantém fiel à sua proposta poética. E a poesia é isso, se a hora do ouro passou:

pérola
negra
araçá
azul
acabou
chorare
tábua de
esmeralda
aprender
a nadar

                A poesia está precisando disso mesmo: reaprender a nadar. As braçadas estão muito curtas para a travessia do inconformismo.
                Vamos a O nome nômade, de Angélica Torres de Lima, com posfácio de Ronaldo Costa Fernandes e orelhas do Alberto Bresciani. É um livro que não escapa dos movimentos que antecedem a poesia do início deste século. Angélica foi formada nas ruas de Brasília e é um tanto duro descolar de uma aprendizagem, mas até que ela consegue. Permanece ainda o excesso de poemas minimalistas, quase hai-kais, como o “Duo Elo”. E consegue partições que só as vanguardas poderiam ensinar:

O anjo
tem num olho
o halo da lua
no outro turvo
a turba
das ruas sujas.

               Acredito que a poesia ganharia mais se houvesse um fôlego para melhor diluição das repetições internas. Pelo menos as ruas aqui são sujas. Não há obrigatoriedade de uma política correta com o espaço urbano. O poema “Por toda a plataforma” vem confirmar esse discurso real. Prefiro o poeta real ao oficial das loas à cidade. Só por esse ajuste com a realidade o livro de Angélica Torres Lima se firma como de grande presença em seu tempo. Não tem pieguice lírica, viaja e dói.
                Teve o lançamento de Tatarana, de poesia visual de Felipe Fortuna. Não consegui ir ao lançamento e também não tenho muito domínio para abordagem de poesia visual. É matéria para o amigo Antonio Miranda, que, neste ano, fez várias edições pela Poexilio, editora artesanal que ele mantem para publicação de obras suas e de autores convidados. Lançou lindas caixas em 2015, que não são abordadas aqui pela própria características das edições (limitadíssimas, só para colecionadores). Mas tenho quase todas, inclusive o belo “Delirium Tremens”, que foi escrito a seis mãos (Antonio Miranda, Zenilton Gayoso e Salomão Sousa).
                Teve a reedição de O prisioneiro, de João Carlos Taveira, em comemoração aos seus trinta anos de poesia. Como é reedição e já integrado a Brasília, vale o que eu já disse na orelha do livro.
                Teve ainda Subversos, de Wélcio de Toledo. Editado por uma pequena editora de Goiânia. Edição cuidada para poemas que não esbarram no medo. O poeta dá evasão ao que está dentro de si. Poderia ter polido o excesso de banalidade. Confio que isso vá ocorrer nos próximos títulos. A poesia de Wélcio Toledo não merece se contaminar pelo pieguismo dos posts das redes sociais e do falso lirismo que atualmente empesta a poesia. Abaixo versos como este: o fim está próximo e eu tão longe de você. Parece esta praga das letras das músicas dos programas de virada de ano. Em frente, Wélcio.
                Deixo de abordar o livro “e outros nem tanto assim”, de Alexandre Pilati. É autor que tem entendimento do processo histórico da poesia. Mas achei a poesia enrijecida, que não se deixa dizer e contaminar o leitor. Há um cansaço dessa poesia que se recorta tanto que não é possível compreender de que vegetal temos na mão a fibra. Mas alguém aí pode me ajudar a entender esse tipo de poesia, que não é de invenção e nem lírica.
                Teve mais livros. Mas esta já é amostra do mesmo e do frágil da poesia de Brasília em 2015.


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