2 de janeiro de 2016

O medo do poeta atual

Ao voltar a Harold Bloom, constato que iniciei o ano mais para pensar do que para ler ou deixar a mente no ócio. Vejo interpretação em tudo que deposito o olhar, por isso Sinésio sinalizou que não fotografo, pois tiro o olhar do objeto. 
Já de madrugada eu me preocupava com o que danifica a prática poética de nosso tempo. Quando fiz o levantamento poético de 2015, praticamente ninguém reconheceu a postagem, pois cada um deseja que eu veja qualquer evento que ocorra, e que nosso olhar seleciona. O homem atual só reconhece o que está em seu desejo, e desmerece o que outro deseja ver. Ocorre que poucas obras têm me causado estranheza por falta de experiência vital de seus autores, de trabalho braçal com o poema. 
Bloom me socorre na questão com o conceito de sublime, de Longino. O conteúdo de uma obra tem de nos provocar estranheza. Ocorre que não é uma estranheza por ser "estranho", mas de espanto no espírito. Um dos versos que mais gosto é de Pasternak: "viver é algo mais do que atravessar um prado". Assim vejo numa tradução. Talvez pudéssemos simplificar a tradução: viver não é simplesmente atravessar um prado. Mas o que tem de estranheza nisso? Não é belo um prado em si e belo também simplesmente por hauri-lo? A estranheza, pelo menos assim vejo, é ser levado a se sentir fora da travessia do prado. Se viver fosse estar só dentro do prado, o verso não teria mais nenhum motivo de existência. Não estamos permanentemente dentro de um prado e, se estivéssemos, a vida seria assaltada por uma enorme pequeneza de possibilidades. Só teria a possibilidade do prado. Neste instante mesmo, deitado em minha sala, eu diria que 

Viver é estar com a porta aberta
e entrar o vento com cheiro de vento

Mas e o cheiro do prado? Do prado da beira do rio Calvo, de uma distante Rússia após algum degelo? A poesia não é dizer o que está posto no verso. É pegar o real e criar algo além do ideológico, como reconhece Bloom: "o estético demanda profunda subjetividade e está além do alcance da ideologia". Então por que ele diz que falta à atualidade a presença de poetas como Emerson e Whitman para interpretação do mal-estar da cultura?
Tenho algumas interpretações para a questão. Primeiramente eu concordo com a proposta de Bloom - no mundo da complexidade moderna, foi multiplicado o campo de ação do homem e o poeta não consegue entrar em todas as divergências. Mas então por que o poeta deixa de compreender pelo menos alguma ângulo do seu tempo para que possa compreender a si mesmo, sem confusão do que é a lírica? Não sou lírico só quando me fotografo. A lírica ocorre com sucesso quando o poeta fotografa com um olhar pessoal e de inteligível estranheza.
O poeta - na minha parca compreensão - deixou de se submergir no prado, de interagir com ele para que possa se expressar com essa experiência. É necessário ter um trabalho braçal com o prado para depois ter um trabalho corporal com o poema. Eu diria mais: o poeta atual é um medroso. Teme ser ideológico - não no sentido partidário, mas de assunção de um posicionamento diante das desolações de seu tempo - para depois estar imbuído de subjetividade expressiva. Só sou autêntico quando penso por mim mesmo, com o meu corporal. Nada que não expresso com o meu corporal conterá estranheza para outro. A poesia exige uma libido do real absorvido pela individualidade do poeta

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