(O primeiro centenário de Vinícius de Moraes)
Por Fabio de Sousa Coutinho
Uma das grandes injustiças que
se cometem contra Vinícius de Moraes, talvez a maior, é referir-se a ele como
"poetinha". Por mais que se lhe pretenda atribuir conotação afetuosa,
o tratamento fica muito aquém de refletir a dimensão intelectual, humana e cultural
do formidável escritor carioca.
Nascido na Rua Lopes Quintas, no bairro da
Gávea, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro de 1913,
Vinícius teve seus contatos iniciais com a poesia e com a música no seio
da própria família. Seu pai, Clodoaldo, era poeta e sua mãe, Lydia, tocava
piano, circunstâncias que encontraram, no primogênito dos Moraes, território
fértil e inesgotável potencial.
Aluno dos jesuítas, no Colégio Santo
Inácio, Vinícius de Moraes ali desenvolveu sólida amizade com seus colegas
Paulo e Haroldo Tapajós. Com eles, ainda de calças curtas, compôs suas
primeiras canções, executadas em festas e saraus familiares e de
vizinhança.
Em 1930, ingressou na célebre Faculdade de
Direito da Rua do Catete, onde se associou ao CAJU, Centro Acadêmico
de Estudos Jurídicos e Sociais, que reunia uma verdadeira plêiade de
jovens futuros bacharéis, com destaque, além do próprio Vinícius, para San
Tiago Dantas, Octávio de Faria, Thiers Martins Moreira e Plínio Doyle. Todos,
sem exceção, viriam a ser, tempos depois, figuras de projeção nacional, nas
respectivas esferas de atuação.
Data do ano da formatura de Vinícius, 1933,
a edição de seu primeiro livro de poesia, O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA. A
ele sucederam o premiado FORMA E EXEGESE (1935) e ARIANA, A MULHER (1936), que
também estampavam a influência do pensamento transcendental, místico e cristão
na formação estética do poeta. Ao organizar sua ANTOLOGIA POÉTICA, em
1954, Vinícius de Moraes nela incluiu apenas um poema do pioneiro O CAMINHO
PARA A DISTÂNCIA, o belíssimo "A uma mulher":
(...)
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E
que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade."
É de 1943, quando Vinícius completou 30
anos de idade, o livro CINCO ELEGIAS, amplamente considerado uma das mais
relevantes obras da moderna poesia brasileira. Nessa época, ingressou, por
concurso, na carreira diplomática, passando a viver longos períodos no
exterior, em missões permanentes (Los Angeles, Paris, Montevidéu).
Em paralelo, intensificou a produção
poética e tornou-se, sobretudo, um extraordinário letrista, compositor e
autor teatral. Sua consagração nesse segmento das artes veio com a peça
musical ORFEU DA CONCEIÇÃO, encenada em 1956, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, para uma atenta, entusiasmada e sempre crescente plateia.
Com a implantação da ditadura miltar
que se seguiu ao golpe de Estado de 1º de abril de 1964, Vinícius de Moraes
sofreu intensa perseguição política em sua repartição funcional, culminando com
truculenta expulsão do serviço público, juntamente com outros colegas
diplomatas, após a decretação do famigerado AI-5, de 13 de dezembro de 1968.
Dedicou-se, a partir de então, em
regime integral, à vida artística, criando algumas das mais lindas pérolas da
música brasileira, a exemplo da que serve de título deste artigo. Teve vários
parceiros de enorme peso, sendo o principal deles o genial Tom Jobim,
autor de um depoimento sobre Vinícius que encerra síntese lapidar, datado
de abril de 1959 e publicado na contracapa do disco POR TODA MINHA
VIDA, de Lenita Bruno:
"Vinícius de Moraes é um grande poeta.
No entanto, isto não é condição para se fazer uma bela letra. Uma palavra, além
do sentido verbal, tem uma sonoridade e um ritmo. Só um indivíduo como
Vinícius, que conhece a música da palavra, que poderia ter sido um músico
profissional, poderia ter feito as letras que fez.
Vinícius é o poeta que sabe comungar com um
crioulo de morro e bater um samba com a faca na garrafa. Educado em Oxford,
diplomata em Paris, triste em Strasburgo, escrevendo "Pátria Minha"
em Los Angeles, falando muitas línguas e sem deixar que se perceba isto, é
sempre o homem que vê o lado humano das coisas.
A versatilidade do meu amigo é espantosa: -
tanto compõe um samba de morro ("Eu e o meu amor") como uma valsa
romântica e sinfônica ("Eurídice") ou ainda uma "Serenata do
Adeus"; tanto escreve um soneto ("de Fidelidade" ou "de
Separação") como uma "História Passional, Hollywood, California"
-; faz cinema, faz teatro e escreve crônicas deliciosas. Tem o sentimento nato
da forma que transcende o que possa ser ou foi aprendido.
Estas são umas poucas facetas do poliedro
cujo número de faces tende para o infinito e que se chama Marcus Vinícius da
Cruz de Mello Moraes."
Na passagem do primeiro centenário de
seu luminoso nascimento, Vinícius de Moraes é sobejamente merecedor da
admiração generalizada de seus patrícios e de milhões de estrangeiros, de
múltiplas gerações. Sua obra se incorporou definitivamente à nossa fisionomia
cultural. Vinícius não passará. Será, daqui a séculos, uma expressão do Brasil.
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