28 de julho de 2010

Mário Benedetti

Todos conspiramos

Versão de Salomão Sousa

Estarás como sempre nalguma fronteira
divertindo em teu sonho e desvencilhado
recordando tudo junto dos charcos e do conforto
tão desconfiado mas jamais incrédulo
nada mais que inocente nada menos
essa fronteira com aduanas
e furos e galões e também esta outra
que separa pretérito e futuro
que bom que respires que conspires
dizem que madrugaste muito cedo
que em plena sesta cívica gritaste
mas talvez nossa verdade seja outra
por exemplo que todos nós dormimos até tarde
até o golpe até a crise até a fome
até a sujeira até a sede até a vergonha
por exemplo que estás só ou entre poucos
que estás contigo mesmo e é o bastante
pois contigo está os quase nada
que sempre foram povo e não sabem
que bom que respires que conspires
nesta noite de apodrecida calma
sob esta lua de moleza de asco
talvez no fundo todos conspiramos
simplesmente dás o sinal de fervor
a bandeira decente com a os cornos de bambu
mas no fundo todos conspiramos
e não só os velhos que não têm
com o que pintar murais de protesto
conspiram o desempregado e o mendigo
e o endividado e os pobres bajuladores
cujo incenso não rende como a cinco anos
a vrdade é que todos conspiramos
mas nem só o que tu imaginas
claro que conspiram sem saber
as hierarquias os cegos poderosos
os proprietários de terra e de suas unhas
conspiram com os piores desleixos
a teu favor que é o favor do tempo
mesmo que acreditem que a sua ira seja a única
ou que descobriram seu filão e sua pólvora
conspiram os bacanas os ministros
os generais bem encadernados
os venais os frouxos os inermes
os crápulas os filhinhos da mamãe
e as mamães que compram a sua morfina
por um abusivo preço inflacionado
todos querem ou não vão conspirando
inclusive o vento que bate na nuca
e sopra no sentido da história
para que isto se parta e termine
de romper o que está esquartejado
todos conspiram para que enfim logres
e isto é o que melhor que queria te dizer
deixar para trás a cândida fronteira
e te instales por fim em tuas visões
nada mais que inocente nada menos
em teu futuro agora neste sonho
desvencilhado e belo como poucos.

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