15 de setembro de 2006

Gosto dos poetas trágicos e objetivos, que enxugam o texto de todo percurso desnecessário. Assim é com a obra do grego K. Kaváfis, que têm toda a sua obra canônica editada agora no Brasil pela editora Odisseus, em tradução também objetiva de Ísis Borges B. da Fonseca. São 154 poemas de toda uma vida. Ou de muitas vidas, se vão se inserindo em outras vidas, basta ver a minha, que não é a mesma vida depois de ter contato com eles.

O meu contato com Kaváfis vem de bem antes. Desde que conheci o poema 14. Esperando os Bárbaros, que é conhecido em quase todas as línguas e por quase todos os homens, principalmente os poetas.

Mas tudo que eu disser será inútil. Já que o poemas podem dizer tudo por eles mesmos. Quem não treme diante desse poema de Kaváfis:


23. A CIDADE


Disseste: "Irei à outra terra, irei a outro mar.
Uma outra cidade há de achar-se melhor que esta.
Cada esforço meu é uma condenação fatal;
e está no meu coração — como morto — enterrado.
Meu espírito até quando ficará neste marasmo?
Para onde volte meu olhar, para qualquer lugar que atente
ruínas negras de minha vida vejo aqui,
onde tantos anos passei, e a destruí e arruinei".

Novos lugares não encontrarás, não encontrarás outros mares.
A cidade te seguirá. Às mesmas ruas voltarás.
E nos mesmos bairros envelhecerás;
e nestas mesmas casas encanecerás.
Sempre a esta cidade chegarás. Quanto a outros lugares — não tenhas esperanças —
não há navio para ti, não há caminho.
Assim como destruíste tua vida aqui
neste pequeno recanto, em toda a terra arruinaste-a.

Que encanto no diálogo de duas vozes, assim partindo de um mundo sem referenciais. Serve para qualquer país, qualquer desnorteamento ético. Encanecerás — ficar de cabelos brancos. Vamos ficando tão distante dos grandes vocábulos!

Ah! me deu vontade de fazer um poema sobre esta cobrança de uma melhor atuação em favor dos locais de que saímos. Eis o poema que ainda estou construindo:


Algo já fizestes por tua cidade
Andastes pelas grotas
pelas ruínas de suas minas
que uma cidade é antes
o que homem esgota e funda
e falseia: arrobas de ouro, sinetes
Nas crostas dos quintais
cavastes fundo para murações
Bebestes das águas
olhastes para os galhos
Ajeitastes na cumeeira as telhas
e murmurastes sob o céu
investido de sol e solidão
Fizestes: guardastes nomes
codinomes de cores, grená
inseticidas nas narinas
gritos nos muros
só para que tremesse
a mulher insone por ti
E no bornal não levavas
só as poucas moedas
Levavas o mofo, o descorar
da liturgia dos mortos
Partistes: e ainda que tenhas
a cabeça no torno
será sempre exigido de ti
outra gota de óleo
outra próxima lâmpada

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