13 de setembro de 2006

A carta entregue na velhice

Quando li a trilogia da crucificação encarnada, de Henry Miller, fui atraído para a obra de Knut Hamsum. Principalmente para o romance Um vagabundo toca em surdina (há edição nova pela Itatiaia), que tem uma poeticidade extraordinária, e que influenciou não só Sexus, Plexus, e Nexus, mas quase a totalidade de obra de Henry Miller. Antes, tinha lido Fome, na bela tradução da coleção Nobel, por Carlos Drummond de Andrade. Hoje, ao pegar o livro, saltou na minha frente este parágrafo:

"Quando chega a velhice, deixamos de viver o presente e passamos a viver de recordações. Chegamos como uma carta ao seu destino; deixamos de ter caminho a percorrer. Resta-nos, unicamente, saber se a nossa passagem pelo mundo desencadeou turbilhões de penas e alegrias, ou se a nossa vida nos deixou uma única sensação."

Tenho medo de já estar ficando velho, pois a todo instante alguma sensação do passado quer sobrepujar sobre os turbilhões que preciso viver no presente.
Talvez ainda não esteja tão velho, pois o mesmo Knut Hamsum, no mesmo romance, diz que "a gente velha se lembra das datas". E quase me esqueço das datas do dia anterior.

Alguma manobra temos de engendrar para enganar a velhice, não deixar que ela bloqueie o caminho a percorrer. A manobra, para continuar o pensamento do romancista norueguês, consiste em continuarmos a escrever a carta para que seja encaminhada ao seu destino o quanto mais tarde possível. Pois, se dizemos: cumpri a minha missão; assumimos que a carta foi entregue. A manobra, portanto, é não esclerosarmos o pensamento, as relações, a nossa realidade.

Ainda noutro dia eu brincava com a minha neta e suas amigas: gosto de vocês. Pois com as pessoas velhas é só colesterol, catarata, diabete...

E para vencermos a catarata, o colesterol, a Lejânia Bello me ajuda com seu pensamento: "para isso há de ser criativo... ousar... desafiar..." Desafiar os próprios limites da esclerose, da catarata, do diabetes. Ainda recentemente visitei um casal muito idoso, que teve uma participação importante em minha vida — que não cabe aqui relatar. Ele resistia com a carta na mão — falou sobre política, puxou relembranças, mostrou-me detalhes do seu ambiente. Quanto a ela — não podia mais ousar. E não queria assumir isso, pois, apesar de "poder", ela não levantava o rosto para ninguém. Naquele instante eu reconheci que ela entregou a sua carta. E eu fui um dos destinatário de boa parte de seu conteúdo.

Já que será inevitável a entrega da carta ao seu destino, que até lá — com todas as manobras que consigamos tecer — possamos entregar um conteúdo que nos torne digno de poder abaixar a cabeça. O seu conteúdo terá de interferir de forma ferina na nossa descendência. Nossos descententes compreenderão que aquele que abriu as estradas de seus destinos, dando a própria estrada que percorria, pode abaixar a cabeça, sem humilhação, para refletir e descansar. E não desejarão arrancar de nós novas forças.

Mas como eu pretendia apenas divulgar Knut Hamsum, transcrevo aqui o primeiro parágrafo do mesmo romances (Um vagabundo toca em surdina). Veja como os caminhos devem anunciar sempre um mundo renovado, mesmo quando nascem com novas cores de nossos pensamentos:

"O ano se anuncia bom para as frutas selvagens: amoras, mirtilos, uvas brancas. Não se pode, evidentemente, viver de pomos silvestres, mas a sua presença empresta ao bosque um ar festivo. E quantas vezes nos refrescam a sede e nos matam a fome."
"Foi no que ontem pensei
."

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